19 março, 2014

Nunca me imaginei sem ele

Nunca me imaginei sem ele*
Nunca me imaginei sem ele.
Foi personagem essencial de muitas fotografias minhas, as primeiras que me tiraram quando decidi nascer, que ainda conservo num velho álbum de folhas de cartolina negra. Fotografias minúsculas recortadas com perímetro ziguezagueante, coladas com cantinhos vermelhos, em que ele me pega ao colo, fazendo-me parecer mais crescida, do que efectivamente era. Com dois meses parecia que tinha quatro ou cinco. Com chupeta, sem chupeta, de repas ruivas ao vento, fazendo caretas …. Sempre a preto e branco, não para fazer estilo, mas por incapacidade da máquina fotográfica daquela época…. Sempre ao colo do sr. Quelhas , o meu querido pai.
Gostava da voz dele, apreciava a sua agilidade, era um homem bonito e culto, era um lutador, era sensível, era teimoso e resistente,  a fragilidade era a sua força para criar soluções para ultrapassar barreiras. Chorava quando ria, exactamente como eu. Usava mais os óculos na cabeça do que no nariz, exactamente como eu faço. Não gostava de compromissos assumidos a longo prazo, porque mudava de ideias…gostava de decidir na hora, olhem eu!
A genética não falha nem mente, para o bem e para o mal.
Acho que foi o melhor pai do mundo, mas provavelmente teria os defeitos que todos têm. Os meus olhos já mais maduros de filha caçula, protegida e mimada, continuam a vê-lo como o melhor.
Quando estava contente trabalhava assobiando. Assobiava muitas vezes a banda sonora do filme ”A ponte do rio kwai”. E cantava bem, muito bem, como tenor.
Sempre o respeitei e sempre o admirei. Pus em causa muitas certezas que ele tinha, mas foi a minha maior referência, quando era criança, quando cresci, quando já pensava que era alguém sem o ser, e depois de ele faltar.
Raramente me deu brinquedos, mas deu-me 2 dicionários Lello Universal quase tão pesados como eu (na época), cujas páginas separadoras coloridas, coloriram muitas horas da minha infância - os serões monótonos do inverno. as horas desocupadas depois da escola, os fins de semana vazios de obrigações…
Deu-me uma bússula, uma clarineta Honner e um catálogo de cores das tintas Cin….
Não riam, pois eu gostei!
Não me contou histórias de princesas e bruxas más…
Contou-me histórias sobre Humberto Delegado, contou-me histórias de mineiros e de explorações de volframite, contou-me histórias sobre as constelações, contou-me histórias sobre Hitler e a resistência francesa, contou-me histórias sobre escravos e sobre heróis como Galileu e Nuno Álvares Pereira, contou-me histórias de viagens… histórias vividas e recontadas na 1ª pessoa.
Também gostava de rir, apresentou-me Cantinflas, Charlot, Sordi, Fernandel e Louis de Funés.
Foi ele que me levou a primeira vez, a um observatório do espaço, a um zoológico, a um porto de mar, a um autódromo, a um teatro, a uma catedral, a uma mina de água, a um museu, a uma fábrica, a uma fortaleza, a um pântano com jacarés…
Não riam, porque eu adorei! Aprendi até a subir a um edifício pelo lado de fora, com andaimes obviamente.
Mostrou-me casas, muitas casas…
Leu-me jornais, a tira do Ruca, partes dos Lusíadas e leu-me Saramago. Lia-me sempre algo do que estivesse a ler. Lia, contava e recontava.
Sempre que eu me sentia entediada com a brincadeira das bonecas e das casinhas ensinava-me a fazer muita coisa, outras coisas, coisas que não se ensinam às crianças por mero preconceito idiota.
Foi ele que me ensinou a articular conhecimento, ensinou-me a fazer paredes assentando tijolos, ensinou-me a fazer vigotas de pré-esforçado, ensinou-me a trocar uma lâmpada, ensinou-me a esticar aço e a fazer grampos, ensinou-me a juntar cimento com areia, ensinou-me a olhar o granito, ensinou-me a fazer escadas, ensinou-me a conduzir, ensinou-me os lagos e as montanhas, ensinou-me a ganhar e a perder, ensinou-me a ser tolerante, ensinou-me a raiz quadrada, ensinou-me a gostar de amarelo, ensinou-me a apanhar girinos nas poças de água, ensinou-me a traçar circunferências em jardins e a fazer tiro ao alvo, ensinou-me a não roubar ninhos, ensinou-me a amar a minha avó Felisbela e a ouvi-la, ensinou-me a gostar de mangas, ensinou-me a andar na rua, ensinou-me a admirar um camaleão, ensinou-me a construir um baloiço, ensinou-me a apanhar cogumelos, ensinou-me a compreender a trovoada, ensinou-me a dar nós, ensinou-me os cuidados a ter com a electricidade, ensinou-me o nome das ferramentas (alguns já esqueci), ensinou-me a respeitar os mais velhos, ensinou-me a ter cuidados básicos de saúde, ensinou-me a respeitar o mar, ensinou-me a educar uma vertigem de estimação, ensinou-me a gostar de teatro, ensinou-me a importância das minhas raízes e da família, ensinou-me a ter consciência social, ensinou-me o que era diplomacia, ensinou-me a ser inquieta e a não saber esperar, ensinou-me a justiça, ensinou-me a autonomia, ensinou-me quem era David Mourão Ferreira e quem era Einstein, ensinou-me a ceder e a resistir, ensinou-me a distinguir o bem do mal, ensinou-me o valor real das coisas,… ensinou-me a pensar diferente, …
                                                     ….ensinou-me a liberdade.

“Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado”
Anabela Quelhas (arquitecta) aprendente e anotadora de espaços.
*Homenagem a todos os pais do mundo que amam os seus filhos.
(Sem acordo ortográfico)